Heng Yi é especialista em Estudos Comparados pela Universidade de Lisboa
O mundo parece em suspensão. Aguarda desdobramentos de uma guerra tarifária imposta pelos Estados Unidos globalmente, mas fortemente direcionada à China. O cenário tem exigido muitas análises da imprensa, de comentaristas políticos e econômicos por meio de dados estatísticos, regulamentos de organizações internacionais, conceitos de cadeias produtivas e afins.
Mas o que será que a cultura, os valores de uma sociedade que são seus pilares, traduzidos por meio da literatura, poesia, cinema, música e as artes em geral, falam sobre as atitudes das nações? Nessa série que começa nesta edição, a ideia é contribuir para mais entendimento do comportamento oriental, no caso chinês, por meio do seu pensamento poético e literário.
E para isso contamos com a ajuda da pesquisadora de poesia chinesa e brasileira Heng Yi, especialista em Estudos Comparados pela Universidade de Lisboa.
O quanto a poesia clássica chinesa pode nos ajudar a entender a China hoje?
Essa é uma pergunta ampla, mas sem dúvida a poesia clássica chinesa é um veículo essencial para compreender o cerne da civilização chinesa. O Shijing (Clássico da Poesia), a mais antiga antologia de poesia da China, foi compilado entre os séculos XI e VI A.C. Ao longo desse extenso intervalo temporal, grande parte das poesias antigas que chegaram até os dias atuais passou por um processo contínuo de transmissão e seleção por diferentes gerações. O que se preservou são, em sua maioria, obras reconhecidas como clássicos. A leitura da poesia clássica chinesa permite, portanto, um acesso direto aos elementos mais centrais da continuidade e da herança cultural chinesa. Além disso, em virtude das características estruturais da escrita chinesa, os leitores contemporâneos enfrentam relativamente poucas dificuldades na compreensão dos poemas antigos. Obras de Li Bai, escritas por volta do século VIII, ainda podem ser lidas com relativa fluidez pelos leitores contemporâneos.
Como estão presentes nos livros escolares?
Essas composições permanecem presentes nos livros escolares e ocupam um lugar de destaque no currículo educacional. Na China, somente na etapa correspondente ao ensino fundamental — que abrange, em geral, crianças de 6 a 12 anos —, os trechos selecionados de poesia e prosa clássicas já representam cerca de 30% do conteúdo programático, sendo frequentemente exigidos para memorização. Pode-se afirmar que a poesia clássica continua a desempenhar um papel fundamental na formação cultural da China contemporânea.

E na história…
Entre as diversas características da poesia clássica chinesa, há uma em especial que merece destaque neste contexto: a sua íntima relação com a história. O poeta e ensaísta Yu Guangzhong observou que, “ao contrário da literatura ocidental, cuja expressão mais elevada muitas vezes reside no campo do religioso ou do mítico — sendo marcada pelo conflito entre o homem e o divino —, a literatura chinesa alcança sua plenitude na harmonia entre o ser humano e a natureza (como em poeta Tao Yuanming), embora seus temas mais recorrentes sejam profundamente terrenos: tratam do indivíduo, de seu tempo e da história. Nesse sentido, a poesia histórica na China ocupa uma posição comparável à da poesia religiosa no Ocidente”. Ler poesia na China é, em grande medida, ler a própria história. É acompanhar os ciclos de ascensão e queda das dinastias, é vivenciar os dramas e os dilemas do indivíduo em meio às transformações sociais. O aprendizado histórico está profundamente entrelaçado com a leitura de poesia e prosa na tradição chinesa. Assim, além de oferecer uma experiência estética, a poesia carrega as marcas do tempo. Ao observar a longa trajetória da história chinesa — com seus inúmeros períodos de prosperidade e crise, as sucessivas mudanças de dinastias e as transformações sociais — compreendemos como isso conferiu à cultura chinesa uma notável diversidade, bem como uma riqueza de experiências e sabedoria. Essa herança milenar moldou a resiliência da civilização chinesa e constitui, ainda hoje, a base sólida da China contemporânea.
Leia a entrevista completa na edição do propmark de 21 de abril de 2025